Ensaio Sobre as Cotas

Muito se tem falado recentemente sobre as cotas para negros nas universidades. Rolam altas discussões sobre ser certo ou não, algumas até inflamadas. Até pouco tempo atrás, eu fazia parte do time que é contra as cotas, usando um dos argumentos mais comuns: o de que as cotas deveriam ser sociais, não raciais.

Sim, é preciso facilitar o acesso ao ensino superior àquelas que não tiveram condições de receber um ensino básico de qualidade, o que na verdade já acontece: minha esposa está estudando por conta disso. Só que estamos falando de problemas diferentes, e entender isso é que me fez passar a ser a favor das cotas.

As cotas raciais não são uma forma de compensar uma educação fundamental de baixa qualidade, mas sim uma forma de pagamento da dívida que o Estado tem com os negros, por conta do período em que era possível ter escravos - todos negros.

Imagine a leitora que estamos em 1888, quando a maioria dos negros é oficialmente escrava. Eles não têm direito de votar, opinar, comprar, ter ou estudar. E então vem o governo e abole a escravidão, deixando milhares de negros livres. Só que livres em termos, porque dizer que não podiam ser mais escravos é uma coisa, fazer as pessoas deixarem de vê-los assim é outra. Mesmo livres, os negros continuavam não podendo nada, continuavam sendo a escória.

Não seria justo, então, que o governo destinasse uma parte das vagas em escolas para os negros, como forma de garantir educação a eles?

Pois bem: a escravidão foi abolida há pouco mais de 100 anos. Para uma vida comum, isso é muito tempo, mas historicamente é pouco. 100 anos não é nada! Os descendentes dos negros libertos, estes que estão aí hoje, ainda sofrem as consequências do racismo que seus antepassados sofreram. Por muitos, eles ainda são vistos como a escória da humanidade. Se o governo na época não fez o suficiente para restaurar a cidadania dos negros, é hora de correr atrás do prejuízo e fazer agora. Na verdade, não é nem restaurar a cidadania, é dar cidadania, porque eles nunca tinham sido cidadãos de verdade. Cotas nas universidades podem não ser a melhor forma de retratação, mas é uma delas, e deve ser usada enquanto for necessária.

Muitos alegam que na verdade o problema não é o fato de negros não terem acesso à faculdade, mas sim que é preciso ter educação básica de qualidade. Só que estes são dois problemas diferentes! Quem defende as cotas não é contra a melhoria na educação básica. Ser a favor de uma coisa não significa ser contra a outra! Falar uma coisa dessas é como dizer "pra que discutir redução de imposto para carros enquanto as estradas estão uma porcaria?". De novo: são dois problemas diferentes. Os negros devem ter um acesso mais fácil garantido assim como a educação básica tem que ser melhorada. E que bom que o governo está fazendo pelo menos uma das coisas.

Tem gente que fala também que a medida é discriminatória, que ela classifica os negros como incapazes de entrarem na faculdade por seus próprios méritos. Só que, como já vimos acima, a questão não é essa. As cotas não são uma prova de que os negros são burros e incapazes de passar no vestibular, elas são, na verdade, uma forma de facilitar o acesso deles porque o sistema como um todo já é contra eles, por natureza.

E aí chegamos num outro ponto importante: tem aqueles que dizem que racismo não existe, e acho incrível as pessoas afirmarem isso. Sem apontar dedo pra ninguém: somos todos racistas, o nosso sistema é racista. Eu faço um esforço consciente para não ser, mas às vezes caio na armadilha e tomo uma atitude racista. Mas é uma questão do esquema em que vivemos, da nossa história, de como somos treinados desde crianças para pensarmos assim. E isso não é uma desculpa, é apenas uma explicação. Este texto aqui pode com certeza servir de exemplo: ele deve estar cheio de comentários violentamente racistas que me farão corar quando encontra-los. Como diz o Alex Castro, o baralho é de cartas marcadas e não basta que os privilegiados não reparem nas marcações: é preciso trocar de baralho. (Aliás, o Alex Castro já escreveu coisa pra cacete sobre racismo e aprendi muito com ele. Recomendo fortemente a leitura de seus artigos sobre o assunto. Comece por aqui e depois continue aqui)

Se racismo não existe, porque tão poucos médicos são negros? Porque tão poucos professores universitários são negros? Porque tão poucos grandes empresários são negros? E porque tantos negros são garis? Porque tantos negros são seguranças? Porque tantos negros são pedreiros? Isso quer dizer que negros preferem trabalhos mais pesados ou que exigem menos esforço intelectual ou que negros sejam burros demais? Ou, ao contrário, quer dizer que o racismo está tão entranhado que aos negros só resta aceitar empregos de menor prestígio e que requerem pouca formação, aqueles que os brancos bem-aventurados não querem? Veja bem, enquanto um negro de terno for visto como segurança, enquanto um negro dentro de um carro caro for visto como manobrista, enquanto um negro caminhando por uma rua deserta em nossa direção for visto como ladrão, enquanto o sucesso de um negro causar estranheza, haverá racismo no Brasil sim.

E o seu melhor amigo ser negro não prova o contrário!

A tirinha abaixo ilustra bem porque é preciso haver o sistema de cotas. Ela foi feita pelo site Leftycartoons. Clique para ver maior.


Um último ponto sobre a utilidade e importância das cotas é que, graças a elas, muitos idiotas são desentocados e se expõem, sem perceber que estão mostrando o quanto são idiotas, porque o que não falta por aí é comentário do tipo protejam suas bolsas (de estudo e de couro), porque os negros vêm aí.

Resumindo: por conta do racismo que ainda existe no Brasil, os negros sofrem as penas que refletem o que seus antepassados sofreram; como o governo na época não fez muito pelos negros, é bom que façam agora. Cotas não são a melhor coisa de todas, mas são uma delas.