A reportagem que me apresentou Chrono Trigger

Já escrevi sobre Chrono Trigger algumas vezes aqui no blog.  Já falei de como conheci o jogo, já falei de série em quadrinhos baseada nele.  Já até gravei uma música!  

Mas nunca tinha trazido pra cá a reportagem que me apresentou o jogo.  Daí que graças ao avanço tecnológico e à existência da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, eu consegui encontrar a matéria onde vi pela primeira vez uma imagem do jogo e que plantou a semente que nos trouxe até este parágrafo.

Taí a imagem da matéria, que foi publicada em 22/10/1995 no caderno Planeta Globo.  Dei uma editada marota pra botar a imagem colorida do personagem principal no lugar a imagem em preto e branco que está nos arquivos da Biblioteca Nacional.




Fragmentos (ou... Meu Passeio Sensível)

Na disciplina de Pesquisa e Prática de Ensino III, no curso de Licenciatura em Cinema e Audiovisual na UFF, o professor Valter Filé nos pediu para apresentar nossos fragmentos. Dito assim mesmo, quase solto, sem muita clareza sobre o que seriam nossos fragmentos.

Nas conversas que se seguiram nas aulas, entendemos que os fragmentos eram as coisas que a gente carregava com a gente porque tinham marcado nossas vidas de uma forma ou de outra. Ou coisas que seriam de suporte para nossos pensamentos em relação à educação. Continuou solto, mas entendemos melhor. Uma colega de turma tentou batizar: apresentar nossos fragmentos era convidar os colegas de turma em nosso passeio sensível.

Escrevi um texto para a aula, para apresentar meus fragmentos, e trago o texto pra cá. 


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No início de 2014, estreou no Fantástico a série Educação.doc, com episódios curtos de oito minutos cada um. Pouco tempo depois, ela se transformou em uma série de cinco programas de pouco menos de meia hora cada, exibidos na tv paga. No final do ano já estava disponível oficialmente no YouTube, dado o tamanho da repercussão.

Dirigida por Luiz e Laís Bolognesi, Educação.doc busca responder uma pergunta simples, porém complexa: é possível termos uma escola pública de qualidade no Brasil? Pra isso, percorreram o Brasil pra mostrar iniciativas que tentam responder um sonoro sim a essa pergunta.

Somando os cinco episódios, a série tem a duração de pouco mais de duas horas. No início do segundo episódio, um professor dá um depoimento que dura pouco mais de quatro minutos. Falando em números exatos, a série dura sete mil, cento e quarenta e dois segundos, o depoimento dura duzentos e setenta e três. Um pequeno fragmento do todo.

O meu fragmento. 

O depoimento é do professor Tião Rocha, e ele conta sobre seu relacionamento com um de seus alunos. Ele narra como esse aluno era dedicado e interessado, lia tudo o que tinha que ler e mais, chegava na aula e fazia muitas perguntas, questionava, levava as discussões sempre além do planejado pra aula. Até que um dia Tião chega na escola e recebe a notícia de que o aluno tinha morrido.

Chegando no velório, foi conversar com os pais do aluno e descobriu que ele tinha se matado. Perguntando se eles sabiam o motivo, recebeu a pergunta de volta. Os pais contaram que imaginavam que Tião saberia a resposta, dada a adoração do garoto por ele.

Tião Rocha diz que não fazia ideia dos motivos que levaram o aluno ao suicídio, mas intui que ele provavelmente deu dicas de que estaria disposto a isso. Conclui, então, dizendo que esse acontecimento mudou os rumos de sua atuação como professor. A partir dali, passou a dar muito mais atenção à história e à vida de seus alunos.

O depoimento de Tião Rocha, por si só, já é suficiente pra dar o que pensar. Mas eu quero ir um pouco mais além com ele.

Quando observamos as coisas mais de perto, mesmo as mais pequenas, podemos ver que são feitas de fragmentos ainda menores. E observando bem de perto o meu fragmento encontro outros fragmentos que são ecos de outras coisas que já encontrei ao longo da vida. Alguns desses ecos têm a ver com o depoimento de Tião Rocha, outros não.

São esses outros fragmentos que compartilho aqui.

 

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"Eu parava tudo pra ir estudar: 'deixa eu ir ler porque amanhã ele vai me argumentar' "


 

Ainda nos primeiros parágrafos de Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire afirma que quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. O depoimento de Tião Rocha é prova concreta disso. 

 

 

 


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"Ele leu os livros que eu li, mas também leu livros que eu não pedi"

 

O segundo ponto que me chama a atenção é quando ele fala da forma com que o aluno se relacionava com a disciplina.

Desde que comecei o curso de Cinema e Audiovisual na UFF, em 2017, tenho sido levado a fazer algo que não fazia com frequência: ler textos difíceis e densos. Foucault, Jacques Aumont, Gilles Deleuze, Sergei Eisenstein, Jacques Rancière, e por aí vai. Desde o início, achei muito difícil ler a maioria deles, na maioria das vezes com uma redação diferente das quais estou acostumado, pantanosos e viscosos. Já conversei com alguns professores e colegas de curso sobre isso mas nunca consegui descobrir uma maneira de melhorar minha relação com estes textos.

Com o passar dos anos no curso fui aprendendo a melhorar essa relação, e esse aluno do professor Tião me serve como um guia quando empaco: é preciso buscar outras referências. Se o texto é complicado, é preciso buscar outras perspectivas, outras referências, comer pelas beiradas.

Mas há uma segunda lição aqui: o aluno tem tomar as rédeas da própria educação, e deixar de ser um agente passivo que apenas aceita o que vem do professor ou da instituição.

 

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"Ele deve ter me dito inúmeras vezes: Tião, tô indo!"

Numa época em que todos estão atrás de mais e mais curtidas e likes e compartilhamentos, estamos ficando doentes. E qual seria o caminho para a salvação? O cuidado com o outro, responde o autor Alex Castro, em seu livro Atenção., que foi lançado em 2019.

Sabendo do seu narcisismo, do seu egoísmo e de todos os demais defeitos que vêm no lastro deles, Alex desenvolveu uma série de práticas para si mesmo, de formas de dar atenção aos outros. Em Atenção. ele apresenta essas práticas, junto a reflexões diversas. Ao invés de auto-ajuda, ele propõe a outro-ajuda.


Ele afirma: "no nosso dia a dia, temos poucas oportunidades práticas de ativamente não estuprar e não roubar, não torturar e não cometer genocídio. Não matar não é uma decisão consciente que tomo todo dia e da qual posso ter orgulho. (...) Mas e se o mal for a falta de atenção? (...) Talvez o mal seja um honesto pai de família que não enxerga nada à sua volta, que não vê a esposa insatisfeita e desesperada, as filhas confusas e autodestrutivas, a sócia abrindo a garrafa de uísque cada vez mais cedo."

Eu acrescento: talvez o mal seja o professor com excelente didática cujos alunos tiram nota máxima no Enem, mas que não percebe o silêncio incomum do aluno nota 10. 

 

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"Eu tava tão entretido, tão preocupado em ser professor" 

Em um depoimento para A Casa do Saber, Clóvis de Barros Filho apresenta sua costumeira boa vontade para dar aula. Diz ele: "eu adoro o que eu digo, eu me encanto com o que eu falo, é impressionante como eu entendo quando eu mesmo explico. E aí então eu me pego em cima de mesa gritando".

Nesse depoimento, Clóvis fala da flutuação de nossa disponibilidade de energia para a vida. Ele parte de como acordamos sem ânimo ("se você compartilha o leito com alguém que acorda cantando, livre-se, porque são pessoas do mal, uma pessoa do bem não pode acordar cantando"), passa por seu amor por dar aula e chega à fragilidade dessa energia ("entra a secretária do departamento, e anuncia que os outros professores estão reclamando que eu grito muito: a minha potência de agir despenca").

Clóvis não deixa nenhuma lição, o objetivo dele não é esse. Mas eu tiro as minhas. A primeira é lembrar que a disposição pra vida não é uma questão de ser, mas de estar. 

A segunda surge justamente por este fragmento ser uma continuação direta do anterior: quando estamos entretidos com nós mesmos, não tem como prestar atenção no outro. 

 

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"Eu não tive tempo de aprender a história dele" 

A querida youtuber e filósofa Jout Jout explanou lá em 2014: tá todo mundo mal. Ou, como ela deixou explícito: 

E olha que ela nem imaginava o mundo em que estaríamos vivendo em 2020!

Nesse vídeo com alto teor de utilidade pública, Jout Jout mostra o quanto as redes sociais são um filtro que distorce a realidade, nos fazendo acreditar que a vida é um mar de rosas, principalmente a vida dos outros.

É preciso ter a consciência de que todos nós carregamos nossos fardos e convivemos com os nossos demônios (ou, como cantou Caetano, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é). Tendo essa consciência, somos capazes de ter sempre em mente duas coisas importantes em relação às pessoas com quem convivemos.

Primeiro, seremos capazes de entender que o comportamento das pessoas sofre com a influência negativa constante desses fardos. Além disso, teremos sempre em mente que mesmo as pessoas positivas, sempre de bom humor e boa disposição, também têm seus problemas e podem estar precisando de ajuda. 

 

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"Ele tá me acompanhando, aonde eu vou ele tá comigo" 

A morte trágica e inesperada do seu aluno leva Tião à reflexão de que é preciso dar mais valor às pessoas. Essa é uma reação comum de todos nós depois da morte de alguém. E é sobre isso que trata o livro Por Um Fio, do médico Dráuzio Varella.

Durante os anos em que trabalhou no tratamento de pacientes com câncer, Dráuzio acumulou histórias de como as pessoas reagiam com a proximidade da morte. Por Um Fio é uma coleção dessas histórias. São histórias de cura ou não, com finais felizes ou tristes. Não necessariamente respectivamente, diga-se de passagem.

Narrando essas histórias, ele chega à conclusão de que a morte ou quase-morte nos leva a um estado de espírito onde estamos motivados a aproveitar a vida, quando entendemos que temos que dar atenção às pessoas, temos que fazer o que gostamos. É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade não há. Não é assim que funciona?

E Dráuzio nos leva então ao questionamento: será que é possível, através de um esforço consciente, alcançarmos este estado de espírito e revisão radical de valores sem que seja preciso passar por momentos de dor e privação?

Pode parecer que sim, mas a rotina acaba por nos deixar acomodados e manter este estado de espírito torna-se um exercício hercúleo. É difícil parar para prestar atenção aos detalhes da vida quando tudo à nossa volta exige agilidade e respostas imediatas. Não é tarefa fácil fazer disso um hábito, mas cabe a nós mesmo exercitar esta atitude ao longo da vida.

Tenho uma receita pra mim. De vez em quando, me faço uma pergunta semelhante: se eu sofresse alguma experiência traumática hoje, eu me arrependeria de como estou vivendo a minha vida? Quando a resposta é sim, é hora de mudar.

 

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Por fim, já que estou falando de morte, aquela que chega no fim, não posso deixar de encerrar citando a letra de As Horas, música de Oswaldo Montenegro. 

 


Tem horas que dói um pouco 

Tem horas que dói demais 

Tem horas que dói pra sempre 

Tem horas que dói em paz