Cresci em uma cidade do interior, e quase nunca ia ao Rio de Janeiro. Quando ia, estava trancafiado em um carro vendo pela janela olha, o Pão de Açúcar, olha o Cristo, olha, Copacabana. Quando criança ouvia falar de eventos, via o carnaval, ouvia falar de chacinas na Candelária, de festas na Lapa. Tudo distante, uma outra realidade.
Hoje vivo no Rio de Janeiro. Já não reparo mais no Cristo. Já fui à Apoteose três vezes. Passo na calçada da Candelária todos os dias. Quando vejo novelas, propagandas, jornais, reconheço as ruas sem que seja preciso que falem quais são. O Rio já está se tornando um pouco a minha cidade.
E começa essa revolta toda em todo o Brasil e uma gigantesca passeata é marcada para o centro do Rio. Da sala onde trabalho dava pra ouvir o barulho. Dava pra ver a movimentação. Estava claro pra todos: uma passagem importante da história seria escrita ali. Não seria suficiente ver pela TV. Era preciso sentir na pele. Bandeira brasileira em punho, fui-me. Não dava pra ficar de fora.
E foi lindo. Saindo da Candelária e indo até o início da Avenida do Samba, milhares de pessoas botando pra fora sua indignação com tudo. Muito cartazes com tudo o que se quer de melhor para o país. Pessoas passavam, liam os cartazes e cumprimentavam quem os estendia. É isso aí, falou bonito, diziam.
Uns 200 metros à frente, a polícia começava a tentar dispersar os manifestantes de frente da Prefeitura. Começamos a voltar. Gritos com palavras de ordem. Mas lá vêm os vândalos, quebrando placas, pontos de ônibus, marquises, a polícia chegando mais perto, alguns correm, vidros quebrando, falta muito?, incêndio perto do Terreirão do Samba, gritos de vandalismo não, e mais vandalismo, gritos de paz, pessoas tentando impedir o quebra-quebra, mas a violência falava mais alto, a polícia chegando mais perto.
Na esquina da Presidente Vargas com a Rio Branco, a polícia bem perto atrás de nós, os olhos e o nariz ardendo com o gás lacrimogêneo trazido pelo vento. Vem da Rio Branco o caveirão da tropa de choque, a toda, estamos no meio, corre!, bomba, tá ardendo!.
Vamos pela Marinha, pelo Mergulhão, lá a gente chega na Praça XV e tenta pegar uma barca. Chegamos na Praça XV, infestada de vândalos, cheia de manifestantes pacíficos assustados, bombas, corre!, tiros, corre!, gás, pra onde?, Barcas invadidas, ali!, abaixa!, fecharam os portões das Barcas, encurralados, senta, senta, senta!, os guardas estão cada vez mais perto, violência não! violência não!, uma lixeira que explode, uma bomba de gás corre na nossa frente, olhos ardem, lá vem a tropa de choque, vândalos fogem, somos da paz aqui!, estamos com medo, tropa vai atrás dos vândalos. Silêncio.
Alguns minutos de espera, uma equipe da tropa de choque entra nas Barcas, as Barcas reabrem e, ainda que sob gritos de Barcas, pode esperar, a sua hora vai chegar, temos segurança. Rumo de casa deixando o caos pra trás.
O que espero para os próximos dias é que as esferas governamentais se conscientizem de que algo está muito podre no Brasil e estejam dispostas a ouvir o povo e a mudar, a realmente mudar. Espero que dos manifestos descentralizados e puramente reativos à opressão acumulada surjam lideranças sensatas e lúcidas que exponham o que o povo quer.
Espero transporte de qualidade. Espero qualidade de vida. Espero saúde. Espero transparência dos governos. Espero menos burocracia. Espero reforma política e fiscal. Espero educação de qualidade. Espero que políticos ganhem menos. Espero que o dinheiro que pago de imposto de renda vá ajudar às famílias que precisam. Espero que filhos de políticos estudem em escolas públicas. Espero que as minorias tenham seus direitos garantidos. Espero o fim da influência do fundamentalismo religioso na política. Espero segurança e uma polícia preparada. Espero a Copa e as Olimpíadas, mas espero também um país melhor, não pra gringo ver, mas pra brasileiro ver.
Uma das noites mais importantes da minha vida. Nada como ver a história sendo escrita ali na minha frente.
Não, não dava pra ficar fora disso.
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