Era uma noite de sábado de carnaval como outra qualquer, e eu estava caminhando pela rua no meio da multidão que estava cada dia mais excitada com a animação dos blocos que passavam. Foi então que a vi. Ela estava parada na beira da rua com uma amiga e com certeza não percebeu que eu tinha parado no outro lado da rua, olhando fixamente para ela.
Tudo bem que o que me atraiu nela não foi exatamente ela, mas sim o fato de que ela era exageradamente parecida com uma outra por quem eu caía de amores. Isabela era a outra. Eu a tinha conhecido alguns anos antes, mas como ela tinha se mudado para outra cidade, muito longe, no interior de Minas, nunca mais pude vê-la, mas ainda assim estava apaixonado e não conseguia pensar em outra garota que não fosse ela.
Daí a atração por aquela garota no meio da multidão. Aquela pele morena, quase negra, os olhos amendoados, o cabelo negro como a noite sem luar caindo pelos ombros nus, tudo me fazia ver na minha frente apenas Isabela, e isso me deixou em êxtase. Eu tinha que falar com aquela garota. Oxalá sua voz fosse igual à de minha amada.
Parei, pensei, respirei, tomei coragem e cruzei a rua, em direção a ela. A coragem caiu pelo meio do caminho e passei ao seu lado, tentando apenas sentir o seu cheiro, que, infelizmente, não lembrava o de Isabela.
Parei atrás dela e admirei seu belo esbelto corpo, um corpo cujas curvas pela quais eu já me acreditava apto a serpentear. Mas a coragem que tinha caído no meio do caminho foi pisoteada pela multidão e seguiu junto com o bloco que passou. Dali rumei para casa. Mesmo sendo cedo, era fim de noite pra mim.
Na noite seguinte, apesar de ter saído para me divertir, não haviam mais blocos, não mais confetes e serpentinas, apenas aquele rosto, apenas aquele fantasma vivo cuja lembrança, sabia eu, iria me atormentar o resto dos meus dias se eu não criasse a coragem e pelo menos ouvisse a sua voz.
Caminhei pelas calçadas lotadas à procura daquelas mãos lânguidas, que poderiam, cria eu, me levar pelas águas caudalosas do rio de uma nova paixão. E lá estava ela. Sentada na arquibancada, junto com uma amiga. Sentei perto delas, a coisa de uns dois metros de distância, juntando toda a coragem que eu tinha. Assim que ela levantou, para comprar sei lá o quê, me levantei e fui atrás.
Antes que ela pudesse chegar ao seu destino, me acheguei e me apresentei. Foi um diálogo curto e fulminante. Com a mesma voz que eu tanto idolatrava - até isso era igual - ela negou o convite para uma conversa com a mesma certeza com que eu nego quando me oferecem uma carreira de cocaína. E sem dó de mim, sem ter noção de como me fez mal, virou as costas e me deixou ali, completamente só no meio da multidão.
E ali o carnaval acabou. As caixas de som deixaram de fazer qualquer barulho e os chocalhos pararam de tremelicar. Viviane e o amor, columbina e pierrô, passaram por mim com suas cores reluzentes mas não conseguiram pincelar tons pastéis em minha existência que então estava cinza.
Natália matou o amor que eu tinha por Isabela, então fui pra casa chorar as mágoas e a saudade no travesseiro para de manhã mudar de vida. Então, numa segunda-feira de carnaval, ainda com ressaca das minhas próprias lágrimas, decidi abraçar o sacerdócio. Estudei muito até minha ordenação, quando então fui pregar o evangelho de Jesus em outro país. Aprendi a falar dialetos africanos e fui para o calor do deserto evangelizar nômades. O Brasil tornava-se cada dia mais uma memória distante.
Cinqüenta anos depois já nem sei mais falar minha língua mãe. Já não sei mais se as pessoas pulam o carnaval do mesmo jeito. Esqueci o significado de palavras como marchinha e conheço apenas as veredas da fé e os caminhos de Deus.
Não me arrependo da minha decisão nem de tudo o que já passei em nome de Deus, mas, volta e meia, sentado em meu quarto nos fundos da capela onde celebro a santa missa, pergunto ao Pai o que teria acontecido se Natália dissesse sim.
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