Este semestre na UFF fiz uma disciplina com a professora Maira Ezequiel sobre séries com protagonistas femininas. Logo eu que não vejo séries. Mas fui lá e encarei. Pra conclusão da disciplina, tivemos que escrever um texto sobre alguma das séries que vimos. Escrevi isso aí sobre a série Queen Sono.
Não escondi a verdade desde a primeira aula: eu não assisto séries. Mas nunca expliquei o motivo. Não é que eu pense que séries sejam ruins (apesar de algumas serem), não é que as histórias sejam desinteressantes (apesar de algumas serem), é mais uma questão de foco mesmo. Veja, nosso tempo de vida é um recurso escasso e de fornecimento incerto. Daí, considerando tudo o que tenho interesse em conhecer e apreciar e estudar, acho que assistir séries, ainda mais as que tem dúzias de episódios, são um desperdício de vida.
Longe de mim dizer que as pessoas que assistem séries estão desperdiçando suas vidas e que deveriam fazer outra coisa. Essa é só uma escolha que fiz pra minha vida. Na minha cabeça, as vinte horas que tenho pra gastar assistindo The Handmaid's Tale podem ser muito mais bem aproveitadas lendo o livro A Canção no Tempo, do Zuza Homem de Melo, ou conhecendo a discografia da cabo verdiana Mayra Andrade, ou estudando piano, ou escrevendo um texto pra faculdade. (E, devo admitir, tenho também um ranço das histórias que ficam enrolando a resolução só pra te deixar preso com vontade de assistir o próximo episódio, e o próximo, e o próximo.)
Mas com Queen Sono foi diferente. Terminado o primeiro episódio, engatei no segundo, e então no terceiro. No dia seguinte, lá se foram os três últimos. Claramente, temos uma exceção à regra. Mas o que me fez, então, assistir os seis episódios de Queen Sono em dois dias?
Um primeiro ponto foi o tipo de história sendo contada. Achei que funcionou muito bem a mistura de James Bond com Missão Impossível, seja nas cenas de ação, seja na temática de intriga internacional e luta contra a dominação e manipulação estrangeira.
Outra coisa que me agradou bastante foram os personagens. Chamou minha atenção eles não apresentarem comportamentos comuns de se ver em filmes e séries. Não há vilões estereotipados, que gostam de discursar seus planos maléficos só pra que o roteiro tenha tempo de salvar os mocinhos. Não há personagens que tomam decisões burras só pra que o roteiro tenha oportunidade de desfilar novas mirabolâncias e enrolar a história pra que ela dure mais do que o necessário.
Ainda sobre os personagens, achei muito interessante ver que as personagens mulheres não são tratadas de forma diferente, seja pelos personagens homens seja pelo roteiro. Elas estão lá como pessoas e assim são tratadas. Seus diálogos, suas ações, suas interações, não são retratadas como é comum ver em outros filmes.
É muito comum ver em roteiros (e na vida real), mulheres sendo ignoradas, vistas como menos importantes e sem relevância nas decisões e ações, mas não em Queen Sono. Na série, as personagens tem ação, tem causa, tem agência, tem motivação próprias. Quando agem e falam, suas ações tem peso e são levadas em consideração, ao invés de serem diminuídas ou simplesmente desconsideradas. Não há homens que ignoram as mulheres simplesmente porque são mulheres.
E o que é interessante, tudo isso é feito de uma forma bem natural. Muitas vezes, percebo que muitas obras artísticas que tentam reproduzir isso o fazem de uma maneira bem forçada. Há em muitas obras um ar de proselitismo, uma tentativa de didatismo que chega a ser piegas e que pode acabar afastando um público que se desejava conquistar.
Queen Sono não tem diálogos expositivos que servem apenas para que os roteiristas possam discursar suas opiniões e intenções. Suas personagens falam o que tem que falar, e fica a cargo da pessoa espectadora perceber que o que se tem ali são pessoas comuns com motivações próprias. Se isso lhes causar algum estranhamento, fica a cargo delas entender que não são as personagens que estão agindo fora da expectativa, mas suas expectativas que estão fora das personagens.
E se falo das relações entre os personagens, não posso deixar de citar as tensões raciais que permeiam a história. O apartheid é uma lembrança vívida que tenho da infância, por ter sido um tema comum nos jornais da época (os anos finais do apartheid coincidem com o início da minha adolescência). Mas apesar de vívida, é apenas uma lembrança descontextualizada e sem noção do peso que carrega. Ver que a segregação e a discriminação são temas tão presentes na série serve para me lembrar que o apartheid pode ter sido abolido legalmente na África do Sul, mas o racismo continua firme e forte. A sequência que mais me chamou a atenção em relação a esse ponto é em que Queen Sono vai até a casa do assassino de sua mãe após a morte dele.
Mais um ponto que me agradou foi a série mostrar aspectos de países africanos que fogem das batidas temáticas de fome-e-pobreza e de natureza-selvagem, e que apontam sempre para o exotismo. O que se vê em tela são cidades e locações diferentes do lugar comum, fugindo de estereótipos tão bem consolidados. Cidades modernas, alta tecnologia, tudo bem distante do que se costuma ver em produções comerciais.
Com um porém importante: não é que a série seja higienizada. Há a pobreza, há a sujeita, há os guetos, mas a série não se resume a isso nem se escora nisso para alcançar a simpatia do espectador, vendendo uma imagem simplista.
Por fim, e talvez o mais importante, o que me prendeu aos episódios foi a beleza estética da série. Os trabalhos de arte e fotografia chamaram muito minha atenção desde o início. Independente da história sendo contada, o que estava sendo apresentado na tela era de encher os olhos. Cinematográfica e esteticamente falando, a série é belíssima. A estética dos países africanos está presente em toda a série, e sua beleza e diversidade chamam a atenção em diversos momentos. A trilha sonora também me agradou muito.
Acredito que, mais que tudo, foi essa beleza constante que meu prendeu à série do início ao fim. Queen Sono tenha sido, talvez, como o pôr do sol quando eu saía das barcas no centro de Niterói e ia caminhando para o campus da UFF no Gragoatá. Era impossível não parar pra admirar, e só continuar a caminhada depois que terminasse, mesmo que chegasse um pouco atrasado na aula.
Afinal, apreciar beleza não é desperdício de vida.