Em maio deste ano a revista
Enfoque Gospel fez uma promoção para o dia das mães, chamada Minha Mãe Vale Uma História. Os leitores deveriam enviar redações contando alguma história sobre suas mães. Para participar, reescrevi a crônica Cinco de Fevereiro, que abre o meu primeiro livro,
Trabalho em Cartório Mas Sou Escritor, mas acabei não ganhando. Trago pra vocês a nova versão.
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Em 1988 descobriram que minha mãe estava com câncer. O pior momento dessa época sofrida de nossa trajetória foi há pouco mais de 17 anos. No dia cinco de fevereiro de 1991 pensávamos que ela iria morrer. Muito mais por ação de Deus do que por solução de remédios e tratamentos, ela não nos deixou. Ao invés disso, ela passou a melhorar dia após dia. Em pouco menos de um ano, nossa vida havia voltado praticamente ao normal, e mamãe estava quase pronta para voltar ao trabalho no colégio onde dava aulas.
Graças ao seu bom salário de funcionária do Estado, eu pude trabalhar pouco e estudar muito. Aos 18 já tinha concluído um curso de inglês, estava fazendo espanhol e cursando o segundo período da faculdade de análise de sistemas na UFF. Entretanto, estava dando entrada para trancar a faculdade por um ano para fazer intercâmbio na Inglaterra.
No final de 1999, voltando da Europa, nos mudamos para outra casa, bem maior e melhor do que a casa onde vivíamos até então. Pouco tempo depois retornei para a faculdade, a qual terminei no final de 2002, estando já empregado em uma grande empresa, trabalhando no que sempre gostei. As coisas a partir dali tinham tudo para correr sem preocupações, mas tudo teve um fim súbito e inesperado quando o maldito despertador berrou na cabeceira de minha cama hoje de manhã. Acordei atordoado, para descobrir que tudo não passava de um sonho.
Ao contrário de o sonho ter contado uma história diferente, não há como mudar o fato de que naquele cinco de fevereiro de 1991 minha mãe perdeu a luta contra o câncer e morreu. Este foi um daqueles momentos que definem o futuro de alguém. Se ela ainda estivesse aqui entre nós, a minha vida hoje, e também meus últimos 17 anos, seriam bem diferentes.
Claro que é triste tê-la perdido tão cedo, mas não fico me lamentando, pensando sobre o assunto. Já passei mais da metade da minha vida sem ela e me acostumei com isso há tempos. Mas o que não posso deixar de fazer é admitir que ela ainda vive entre nós. Não fisicamente, claro, muito menos temos uma alma penada perambulando pela casa. Nada disso! O que vive dela entre nós é a sua memória, que permanece intocada.
Ao perder minha mãe, ganhei muitas outras: como ela era professora de nível fundamental, tinha muitas e muitas amigas chegadas, e como vivemos em uma cidade pequena, do interior, todo mundo soube do ocorrido na época e, tendo eu apenas onze anos de idade, todas elas, as amigas, se prontificaram a ajudar o meu pai a cuidar de mim, filho único.
Eu só fui descobrindo estas ajudantes com o tempo, já adulto, quando as pessoas vinham conversar comigo sobre minha mãe e contavam que reparavam o que eu fazia pelas ruas, prontas para me delatar caso aprontasse alguma traquinagem. Até mesmo de completas estranhas eu já recebi esta notícia. Certa vez, aguardando no cabeleireiro, uma mulher virou pra mim e disse:
- Eu ajudei seu pai a te criar!
Meu Deus, uma desconhecida falando um negócio desses, imagina! Aí ela explicou que tinha trabalhado com minha mãe e que me conhecia desde que tinha nascido. Só eu, com minha memória falha, é que não fazia a mínima idéia de quem ela era.
Mas isso não aconteceu só com gente de fora da família. Um primo meu certa vez me contou que, a poucos dias de sua morte, minha mãe chamou-o para sentar ao seu lado e fez um de seus últimos pedidos: que ele tomasse conta de mim, que zelasse pela minha educação, que não deixasse eu me meter com pessoas ruins.
E não são apenas as pessoas que ajudam a manter viva a sua memória. O que dizer dos objetos? Hoje estou noivo, me preparando para casar, e uma pequena parcela do nosso enxoval são coisas que foram dela, muito bem conservadas. E não é uma questão apenas de coisas que ela tenha comprado, mas também de coisas que ela mesma fez: costurando, pintando ou bordando. Ou tudo ao mesmo tempo.
Em uma estante estão também os livros. Livros que ela leu e manuseou: as anotações às margens, com a sua letra desenhada inconfundível, estão lá para provar. Se enquanto ela vivia eu era muito criança para entender os pensamentos de um adulto, hoje, ao ler os livros que ela lia, consigo compor na mente um retrato de seu jeito de ser e de pensar. As frases sublinhadas me mostram as coisas nas quais ela acreditava, com o que concordava, ou até mesmo quais eram os seus questionamentos em relação às coisas da vida. Num outro canto estão velhos discos de vinil. Músicas que, mesmo que eu passe anos sem ouvir, ainda moram no meu subconsciente, pois são aquelas com as quais ela me ninava.
Sim, eu sei que esta não é a história de uma pessoa, mas sim de sua memória. Se minha mãe já se foi e não pode mais criar assuntos para serem contados mais tarde, sua memória, sim, tem este poder, pois esta ainda está sendo construída, dia após dia, através dos fragmentos deixados aqui e ali, encontrados ao acaso em um canto de guarda-roupas ou no fundo de uma gaveta.
Sua memória é uma história em forma de quebra-cabeças que é remontado a cada dia, e que me ajuda a escrever as páginas da minha própria vida e a determinar meu próprio caminho. Por tudo isso, no dia do aniversário de sua morte, me pego desejando que ela estivesse aqui comigo, pois sei que ela adoraria me ver tocando meu teclado, sendo dono de minha vida, sendo quem sou, me vendo chegar onde eu cheguei, e contando sua história.