Arte: Afirmações e Questionamentos

Durante o segundo semestre de 2019, cursei a disciplina Sociologia da Cultura I, com o professor Jorge de La Barre. O que segue abaixo é um artigo que escrevi para a disciplina.

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Depois de termos assistido ao filme Verdades e Mentiras (Verités et Mensonges, Orson Welles, 1973), iniciamos uma discussão em sala de aula acerca da veracidade e do valor das obras de arte. A partir dessa discussão, tivemos a oportunidade de elaborar perguntas e propostas baseadas no que tinha sido conversado. Busco neste artigo elaborar minhas ideias em torno das cinco propostas e duas perguntas sugeridas. Elas aparecem aqui na ordem em que as anotei, não na ordem em que foram feitas durante a aula. Abordo primeiro quatro das cinco propostas, em seguida as duas perguntas, e por fim uma última proposta, sobre a qual me debruço com mais detalhamento.

A primeira proposta foi "a arte deve ser real." A princípio acho esse um ponto complicado de elaborar, porque depende muito de qual é o entendimento sobre "ser real." O que é "ser real?" Se partirmos de um ponto de vista de que o que é real é aquilo que pode ser tocado fisicamente, a proposta é excludente, pois deixa de fora a música. Esticando um pouco o entendimento sobre tocar fisicamente, isso pode deixar também de fora o cinema. Portanto, não acredito que o ponto de vista acerca da realidade da arte seja este.

Outra possibilidade de interpretação da realidade da arte pode dizer respeito à autenticidade da obra de arte. Levando em consideração que o filme que vimos retrata um falsificador de pinturas, acredito que esta tenha sido a intenção da pessoa que fez esta proposta. Sob este ponto de vista, sou levado a concordar com a proposta. Se um artista desenvolve uma técnica ou um estilo de trabalho, e outra pessoa busca fazer cópias de suas obras, claramente há uma irrealidade nessas cópias.

E isso me leva a um terceiro entendimento possível sobre a realidade da obra de arte, que tem a ver com a sua intencionalidade, e está intimamente associado ao segundo entendimento. Mesmo que uma obra não seja propriamente uma falsificação de outra, ela pode ser uma mera cópia da forma de fazer, e busque apenas capitalizar em cima do sucesso de outrem. Neste caso, uma obra que é apenas uma cópia que busca surfar na onda de sucesso de uma outra com certeza não pode ser chamada de arte.

A segunda proposta foi "a arte sempre foi reprodutível." Vejo duas formas de interpretar essa proposta. A primeira forma diz respeito à obra de arte como objeto físico, que sim, quase sempre pôde ser reproduzida. Uma pintura pode ser reproduzida, um livro pode ser copiado, a dança pode ser dançada por outras pessoas. Obras que não podem ser reproduzidas são exceções, como grandes esculturas, por exemplo. Em linhas gerais, entretanto, sim, a arte sempre foi reprodutível.

A segunda forma de interpretar essa proposta é em relação à sua originalidade. Quando falo aqui de originalidade, não confundir com autenticidade: estou falando de ser original em relação ao ineditismo da técnica, da forma, ou até mesmo do seu momento histórico. Ou seja, aqui estou pensando a arte não como uma obra específica, mas como forma de expressão. Sob esse ponto de vista, nem sempre a arte foi, ou é, reprodutível, como afirma a proposta.

Um exemplo brasileiro que posso citar aqui é a Tropicália. Fruto das inquietações artísticas de Caetano Veloso, Gilberto Gil e um apanhado de outros artistas, floresceu e implodiu num intervalo de meses no final da década de 1960 e marcou de forma indelével a história da música e da arte brasileira. Muito embora ainda hoje existam artistas que se inspirem e emulem de uma forma ou de outra seu estilo, pode-se dizer que a Tropicália é irreprodutível. Como forma, como movimento artístico, só poderia ter acontecido naquele momento. Tivesse acontecido uma década antes, ou uma década depois, teria causado outro impacto e teria outra estética e postura.

A terceira proposta foi "a arte causa fascínio duradouro, a cópia causa fascínio efêmero." Aqui, com base nas conversas em aula, me parece que a diferença entre arte e cópia foi entendida como a autenticidade ou não de uma obra de arte. Sob este ponto de vista, minha posição é a de concordar com a proposta.

Em seu artigo Tainted by Association, Paul Sagar examina o comportamento comum que as pessoas têm de atribuir valor a objetos de forma arbitrária, por conta de relações destes objetos com eventos do qual fizeram parte. Ele sugere, por exemplo, que uma guitarra usada por Jimi Hendrix seria muito mais valorizada do que uma outra, de mesma marca e modelo, mas que não tivesse tido um dono de renome.

Uso o mesmo raciocínio para concordar com a proposição em questão. Tendo em vista o quanto as pessoas tendem a atribuir valor ao que é original, ao que tem verdadeira associação com um artista renomado, obras de arte originais tendem a causar fascínio duradouro, enquanto que cópias têm a tendência de serem esquecidas, mesmo que apresentem as mesmas qualidades técnicas das obras originais.

Estas reflexões acerca do valor atribuído a uma obra de arte autêntica e uma cópia são extensamente discutidos no artigo Whys of Seeing, de Ellen Winner. Citando inclusive Walter Benjamin, personagem capital de nossas primeiras aulas, Ellen argumenta que "aparentemente, tratamos obras de arte como se contivessem a essência do artista, ou sua mente."

Ela destaca que, no entendimento de Benjamin, nossa resposta estética a uma obra leva em consideração a história do objeto, sua existência única, e que, portanto, uma falsificação teria uma história diferente, deixando de ter assim a "aura" possuída pela obra original. Eu acrescento duas reflexões a isso: primeiro que esse ato de levar em consideração a história do objeto para determinar nossa resposta estética pode ser, inclusive, inconsciente, fruto de uma forma internalizada de raciocinar e inteligir uma obra de arte. Segundo que não apenas a falsificação deixaria de ter a "aura" do original. Uma cópia declarada também não a teria, mesmo que não tivesse a negatividade de uma falsificação atrelada a si.

A quarta proposta foi "a reprodutibilidade é acessibilidade." Esta é mais uma proposta com a qual concordo. Por acreditar na importância da arte na vida das pessoas como força e forma de expressão, creio que quanto mais acesso as pessoas tiverem à arte, melhor. Daí que, considerando a dificuldade de acesso a obras de arte originais, sua reprodutibilidade pode torná-las mais acessíveis a um número maior de pessoas. A possibilidade de reprodução das obras é peça chave para a disseminação da arte, pois, como afirma Walter Benjamin (em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica), é essa possibilidade de reprodução que permite à arte se emancipar de uma existência única e estática.

Tem-se que levar em consideração também de que há formas de arte que se sustentam, inclusive, sobre a ideia de reprodutibilidade, pois dependem dela para que possam ser usufruídas e disseminadas. O cinema e a música são os casos mais claros, pois sua existência sensorial só se dá no instante em que são reproduzidos. A fotografia, também, por si só já é uma reprodução.

Quanto às perguntas formuladas, a primeira delas foi "como o valor de culto e o valor de exposição mudam com o mercado?" Acredito que a resposta para esta pergunta passa pelo cruzamento de duas ideias. Primeiro, pelas reflexões feitas por Paul Sagar no artigo citado anteriormente, Tainted by Association. Segundo, pela noção de como empresas (o "mercado") podem usar a propaganda para direcionar os interesses de massa, conforme vimos no primeiro episódio da série O Século do Ego (Century of the Self, Adam Curtis, 2002).

Tomando-se de um lado o apego emocional que as pessoas têm a objetos diversos, combinado com a manipulação mercadológica (dissimulada, em maior ou menor grau), é perfeitamente possível que o valor de culto e o valor de exposição de qualquer obra de arte, ou mesmo de uma forma de arte como um todo, mudem com o tempo. Na minha opinião, essa movimentação de valores é o que se chama vulgarmente de moda.

Porém, se formos nos basear na forma com que Renato Ortiz entende o pensamento de Adorno (em A Escola de Frankfurt e a Questão da Cultura), é possível afirmar que a pergunta proposta em aula parte de uma premissa inadequada. Pela maneira com que foi formulada, podemos entender que a pergunta assume que os valores de culto e de exposição se alteram em resposta à movimentação do mercado. Entretanto, segundo Ortiz, a reação já se encontraria pré-moldada no público. Ou seja, não é que os valores de culto e de exposição mudem em resposta à movimentação do mercado, mas sim que são intencionalmente manipulados pelo mercado. É perfeitamente possível acreditar, portanto, que a pergunta real seja "como o valor de culto e de exposição mudam sob a influência e interesses do mercado?"

O segundo questionamento foi "o valor da obra se perde com o tempo?" Tendo em vista o que foi discutido em relação ao questionamento anterior, acredito que sim, o valor da obra pode se perder com o tempo. Mas não apenas isso: acredito que o valor da obra flutua com o tempo, podendo ser maior ou menor de acordo com a conjuntura de cada época.

Uma primeira causa para isso é justamente a manipulação da percepção do valor da obra pela influência e interesses do mercado. Outro ponto que acredito ter influência são as mudanças na forma de determinar o valor de uma obra. Como afirma Walter Benjamin (no já citado em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica), a percepção humana é condicionada historicamente. Portanto, o fator determinante do valor de uma obra pode mudar com o decorrer da história. Em um momento, o que dá valor a uma obra pode ser a sua originalidade. Em outro, a fonte de valor é tão somente sua autoria. E mais adiante, o fator determinante passa a ser a sua importância histórica.

Finalmente, a última proposta foi "a reprodução pode ser arte." Do meu ponto de vista, esta proposta e seus desdobramentos estão intimamente ligados às duas primeiras propostas. Se reproduzir for meramente realizar uma cópia cujo objetivo seja capitalizar em cima dos sucessos de uma outra, então não faz muito sentido chamar a reprodução de arte.

Uma outra possibilidade de elaboração em cima dessa proposta é se partirmos do entendimento de arte como simplesmente a técnica. Peguemos como exemplo as pinturas do filme que assistimos em sala de aula. Se removermos a questão da intencionalidade e originalidade da obra da equação que determina a sua "artibilidade," e partirmos do princípio de que a pintura, como forma de arte, tem a ver apenas e tão somente com a técnica, então um quadro idêntico a um outro é, sim, arte.

Vou usar um outro exemplo para defender a ideia de que a reprodução pode ser arte, desta vez a partir da música. Em 2012 foi lançado o disco Good Morning to the Night, creditado a Elton John, músico então com pouco mais de quarenta anos de carreira, e PNAU, duo australiano de música eletrônica com poucos anos de carreira. Admirado com o trabalho da dupla, Elton John deu a eles acesso às fitas master de seus trabalhos nos anos 1970, dando a eles total liberdade de retrabalhar as músicas. O disco lançado como resultado desse trabalho não tinha nada de novo, por conter apenas samples de músicas originais do Elton John. Mas ao mesmo tempo só trazia novidades, pois desmembrou as músicas e costurou os trechos em composições novas e originais que não existiam antes. Não passavam, enfim, de reprodução, mas ao mesmo tempo eram sim uma forma de arte.

Um outro trabalho que segue essa linha é o documentário Histórias que Nosso Cinema (não) Contava (Fernanda Pessoa, 2018). Nele, a diretora Fernanda Pessoa lança mão de centenas de trechos de filmes brasileiros do gênero pornochanchada, os recorta e intercala, construindo uma nova obra que revela como esses filmes retratavam o momento político do país. Como afirma Inácio Araújo em sua crítica para o caderno ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo, Histórias… "traz à luz uma história que inconscientemente se acomodou nos filmes, mas, ao mesmo tempo, histórias que não conseguimos detectar nesses filmes." Novamente, obras de arte reproduzidas que são ao mesmo tempo uma nova obra artística independente.

Encerrando o desenvolvimento de ideias sobre este assunto, acho importante referenciar a série de vídeo ensaios Everything is a Remix. Nessa série de quatro vídeos, Kirby Ferguson faz uma longa análise de como a cultura popular de massa, nascida na segunda metade do século XX, é em sua grande parte feita de reaproveitamentos e reinterpretações de conceitos e ideias anteriores. Entretanto, ao mesmo tempo em que defende a tese do reaproveitamento de ideias, não desmerece o que surge como fruto desse reaproveitamento.

Em uma entrevista para o canal Konbini, o músico francês Jean-Michel Jarre mostra estar bem alinhado com o pensamento de Kirby Ferguson, quando afirma que o sampling é uma das características fundadoras da música moderna. Ele diz que todo mundo remixa todo mundo, que Picasso remixou arte africana, que todos roubam a todos. E que no caso da música eletrônica esse chega a ser um trabalho de bricolagem.

Em uma apresentação em numa conferência TED em 2012, para ilustrar seu argumento de que tudo é um remix, Kirby apresenta diversos trabalhos de artistas que são obras anteriores retrabalhadas. Entre outros exemplos, ele cita músicas de Bob Dylan e o disco The Gray Album, de Danger Mouse. Ele afirma que o processo de copiar, transformar e recombinar é o que há por trás da criatividade.

E o que surge na esteira da criatividade, senão a arte?