Uma Escolha Pro Resto da Vida

Depois de tanto tempo juntos, e tão bem, seria até um pecado dizer que Douglas não confiava na Beatriz. Ah, disso ninguém poderia duvidar, ninguém poderia, em momento algum, dizer que sua confiança era menor que 100%

Mas ainda assim Douglas estava apresentando sinais de medo. Tudo bem que só ele sabia da existência desses sinais, mas por isso mesmo ele tinha a mais pura convicção de que seria ele próprio o responsável pelo crescimento ou desaparecimento deste medo.

Vamos deixar claro que ele não tinha medo da Beatriz, mas sim medo de Murphy. Murphy, aquele cara que disse que se alguma coisa pudesse dar errado, daria. Era isso que estava começando a ameaçar a paz de Douglas, fazendo-o pensar que todo aquele amor que estava vivendo poderia se acabar de uma hora pra outra.

Parou então para pensar e viu que tinha duas escolhas. A primeira, que de início lhe pareceu mais sensata, era passar a viver com um pé atrás, sempre pronto para se segurar em caso de um desastre. Continuaria amando Beatriz sim, mas talvez não com toda a força que poderia ser capaz de amar, e assim estaria a salvo de ter um coração partido.

Vislumbrou então a segunda possibilidade. Se entregar de vez, por completo, de corpo e alma, sem restrições, àquele amor que nos últimos meses só sabia crescer. Seria como fazer rapel sem corda de segurança, pular de um avião sem um pára-quedas sobressalente.

Viu que, se vivesse com um pé atrás e as coisas dessem certo, ele iria ter certeza de que vivera um amor meia-boca, que poderia ter sido perfeito mas que não passou do comum. E caso se entregasse por completo, viveria o amor da forma mais intensa possível, o que o faria morrer feliz.

E então, quando teve que escolher entre se arrepender por não ter corrido riscos e sofrer a dor de uma separação, chegou à conclusão de que preferia quebrar a cara mil vezes do que apenas existir e não viver. E amou. Cada vez mais.

Seu Domingos

Seu Domingos é um senhor já na terceira idade. Não sei quando é que veio morar aqui na nossa cidade, mas sei que até poucas semanas atrás ele morava em algum lugar de São Gonçalo.

Também não sei dizer em que condições ele vivia, mas tenho certeza de que não era numa casa bem acabada. Só consigo enxergar o seu Domingos numa casa ainda com os tijolos à mostra, num quintal sem cuidados, perto de um valão, algo assim. Talvez nada muito mais luxuoso que isto.

Mas pior do que suas condições de moradia, estava seu estado de saúde: aidético. Com 65 anos e aidético. Duro de se ver. Se alguém acha que não poderia ser pior, pode sim: sua única filha não tem o menor interesse em cuidar dele. Em suas próprias palavras, estava largado às moscas em casa, até que sua sobrinha apareceu.

Quando ela foi visitá-lo, seu Domingos chorou como criança, dando graças a Deus pela chegada de sua possível salvação. E, sim, sua sobrinha foi sua salvação. Como a filha de seu Domingos não se preocupava com ele, a sobrinha o trouxe para nossa cidade, onde ele finalmente foi internado em um hospital para receber o mínimo de tratamento possível, já que o nosso hospital não é nenhum exemplo de qualidade. De qualquer maneira, estar no hospital de Cachoeiras é melhor que estar largado às moscas em um barraco de São Gonçalo.

A sobrinha dele, então, cujo nome nem me lembro mais, foi até o cartório para poder fazer uma procuração, de modo que pudesse agir as coisas para ele. Ela me passou a documentação e alguns dias depois fui com ela até o hospital para pegar a assinatura dele.

Magro, fraco, velho, doente. Bem doente. Mas ainda assim um exemplo de pessoa. A maioria das pessoas que estivesse numa situação parecida com a dele com certeza entraria em depressão, mas não é o que acontece com ele. Não sei se seu Domingos é religioso, se crê em Deus, se reza todas as noites, mas ainda assim, ele é um exemplo de perseverança que vou me lembrar pra sempre.

Seu Domingos é um grande brincalhão, que faz piada com o próprio estado. E também tem força para seguir em frente. "Eu vou chegar aos setenta, vocês vão ver". Muitas piadas depois, com o documento já assinado, voltamos ao cartório, eu e sua sobrinha. Foi aí que conheci a história dele, de onde ele tinha vindo, como tinha chegado até ali.

Seu Domingos pode até não ter chances de viver muito, mas com certeza foi salvo pela sobrinha de sofrimentos maiores se ficasse com a filha. Abençoada sobrinha que abre mão da própria vida para salvar o tio. Abençoado Domingos que não desiste de lutar.

Isto não é um conto, é uma história verídica, e dói pensar que existem muitas pessoas como ele que não são salvas. Que não têm uma sobrinha para socorrer, que têm filhos que não estendem a mão. Mas seu Domingos, com sua energia, tem um bom exemplo para mostrar. Que Deus lhe dê muitos anos de vida. Que Deus o abençoe.

Mário, Mário

Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Mário, Mário
Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida

Cartórios - Autenticação II

O texto anterior ganha uma continuação graças a umas dúvidas da série "coisas que a Trinity sempre quis saber sobre cartórios e teve medo de perguntar". Pergunta ela:

O documento autenticado tem valor de original? Se não, pra que que serve?

Sim, o documento autenticado tem valor de original. Tanto é que muita gente anda com documentos autenticados na carteira, para se ferrar menos em caso de roubo. Mas, ainda assim, existem lugares que não aceitam cópias autenticadas.

Posso autenticar a cópia de um documento (do documento mesmo, não da cópia autenticada) apresentando uma cópia autenticada do mesmo documento?

Por incrível que pareça, isso não pode. Sim, eu sei que é absurdo, nós do cartório concordamos com isso, mas não pode. É decisão da Corregedoria Geral da Justiça, o órgão oficial que rege o funcionamento dos cartórios e saiu até no Diário Oficial. A propósito, também não pode autenticar a cópia de uma cópia autenticada.

Aproveitando o assunto de pode-não-pode, dá pra acrescentar na lista que cópias feitas em fax não podem ser autenticadas.

Cartórios - Autenticação

Antes de mais nada, vamos logo detonar com uma coisa que muita gente fala errado. Não é autentificação. Há tempos eu gostaria de saber de onde esse povo arranjou mais uma sílaba para a palavra. Gente, pensem em autêntico. Autêntico quer dizer verdadeiro. Dizer que uma coisa é verdadeira então cria a palavra autenticar, tornar autêntico. Portanto, enfiem o fi onde bem entenderem, mas nunca no meio desta palavra.

Bom, só por isso já dá pra entender o que é autenticar. É dizer que uma cópia é genuína, autêntica, verdadeira. Portanto, nunca cheguem num cartório pedindo para autenticar um documento original. Um original já é autêntico por natureza.

Outra coisa que muita gente acha que o cartório faz é tirar a cópia do documento para então autenticar. Ledo engano. Tem cartório sim que tira a cópia, mas isso não faz parte do serviço de autenticar. Autenticar é apenas "reconhecer como autêntico", e não "tirar uma cópia e reconhecer como autêntica". Portanto, antes de entrar num cartório para isso, tire a cópia antes.

Para autenticar uma cópia, esta precisa estar legível, em perfeitas condições. Não podem ser autenticadas cópias muito claras nem muito escuras, com partes ocultas ou xerox de apenas uma parte do documento. O que não falta neste mundico de Deus é gente que tira cópia só um pedaço do documento e cisma que o cartório tem que autenticar só aquele pedaço. Isso é errado. Basta, novamente, pensar que autenticar significa dizer que uma cópia é reprodução fiel de um documento. Como é que a xerox de apenas uma parte do documento pode ser uma reprodução fiel? Talvez na China. Ou na casa do Edward Mãos de Tesoura.

Outra coisa: frente e verso. Lembrem-se disso. Frente e verso. Mesmo que o verso tenha apenas uma propaganda, ou apenas um carimbo insignificante: frente e verso. Cópia fiel do original, lembram? Só não precisa se o verso estiver em branco.

Por fim, algo que pode parecer ridículo, mas a pá de gente que chega no cartório querendo isso é desconcertante: na hora de autenticar, levem o maldito original ao cartório! Como é que o funcionário vai dizer que uma xerox é cópia fiel de um original se ele não pode compará-la com o original? Não adianta chorar, dizendo que perdeu o documento, que ele está em outra cidade, que esqueceu em casa ou que está preso na polícia: se não mostrar o original, nada feito.

Por fim, quanto ao preço, ele é cobrado por documento. Se alguém tirar duzentas cópias em uma folha de cartolina, serão cobradas duzentas autenticações.

Cartórios - Reconhecimento de Firma

Para entender o que é um reconhecimento de firma, vamos dar uma olhada no dicionário. Só isso já vai bastar para explicar bem a coisa. Reconhecer significa admitir como verdadeiro, verificar. E firma, neste caso, não é sinônimo de empresa, mas sim de assinatura. Ou seja, reconhecer uma firma quer dizer verificar se uma assinatura é verdadeira.

O reconhecimento de firma é usado para assegurar que uma assinatura colocada num documento é realmente da pessoa que deveria ter assinado. Para isso, basta ir com o documento a um cartório onde a pessoa tenha aberto sua firma e pedir para reconhecê-la. O funcionário procurará a ficha da pessoa e fará a comparação. Se bater, o documento recebe um selo e uma etiqueta onde consta o nome da assinatura reconhecida, algo tipo "reconheço por semelhança a assinatura de Fulano de Tal". Se a assinatura não bater, não adianta chorar. A pessoa que assinou terá que ir ao cartório e deixar a sua nova assinatura.

Existem dois tipos de reconhecimento de firma: por semelhança e por autenticidade. No reconhecimento por semelhança, qualquer pessoa pode levar um documento ao cartório, mas quando o reconhecimento deve ser feito por autenticidade, a pessoa que assinou tem que comparecer no cartório portando identidade e CPF. Geralmente, este reconhecimento é feito em documentos mais 'sérios', como documentos do Detran e de empresas de telefone. Ao abrir a firma num cartório, a pessoa pode pedir que o reconhecimento de sua assinatura seja feito sempre por autenticidade. Fazendo assim, a pessoa assegura que ninguém vá falsificar sua assinatura.

Para abrir firma, para se dirigir a um cartório com sua carteira de identidade e CPF. Uma ficha é preenchida e você tem que assinar na dita cuja. É com ela que as assinaturas dos documentos serão comparadas.

O cartório não pode reconhecer uma assinatura que não esteja batendo porque, se ocorrer algum problema no futuro com aquele documento, como por exemplo a alegação de que a assinatura é falsa, um juiz pode intimar o cartório a apresentar a ficha da pessoa, para verificar a semelhança. Se constatar que a firma foi reconhecida sem haver semelhança entre as assinaturas, o bicho pega para o responsável do cartório.

Cartórios

Sei que o assunto não tem muito a ver com o que costumo escrever, mas resolvi compartilhar com minhas leitoras o que tenho aprendido no meu serviço lá no cartório. Sei que isso não vai melhorar a vida da gente lá no Segundo Ofício, mas pelo menos eu vou ficar com a sensação de que as pessoas vão entender melhor sobre meu trabalho.

Antes de mais nada é preciso entender que cartório é uma palavra genérica. Existem vários tipos de cartórios, e eles nem sempre entendem os serviços que os outros fazem. É tipo loja. Existe loja de roupa, loja de comida, loja de remédio, loja de eletrônicos. Não adianta chegar numa loja de remédio e perguntar se o teclado da Yamaha modelo PSR-292 tem saída MIDI digital. Portanto, não fiquem nervosos quando o atendente de um cartório não puder lhe explicar como é que se tira uma segunda via da certidão de nascimento se você entrou num cartório de registro de pessoa jurídica. Estas são duas atividades completamente diferentes.

Por muitas e muitas vezes já atendi gente no cartório que chegou perguntando quanto custava para tirar um título de eleitor (serviço de cartório eleitoral) ou então quanto custa para registrar um filho (serviço de cartório de registro civil). Aí, quando a gente diz que tem que ir em outro cartório, as pessoas ficam nervosas, alegando que "puxa, isso aqui não é um cartório?". Pra ter noção de como isso é absurdo, seria como chegar num açougue, pedir uma aspirina, e quando o cara mandar você ir a uma farmácia, você reclamar "ué, mas aqui vocês não vendem coisas pra poder ganhar dinheiro?"

Logo, existem vários tipos de cartório: cartórios de registro civil, que tratam de nascimento, casamento, emancipações, óbitos e afins; cartórios de protesto de títulos, que fazem notificações a quem está devendo e podem mandar o nome de alguém para o SPC; cartórios de registro de imóveis, que lidam com os dados relativos a quem é dono de que imóvel; cartórios de notas, responsáveis por fazer procurações, reconhecimentos de firmas, escrituras e outros; cartórios de registro de títulos e documentos, que arquivam quaisquer documentos que as pessoas queiram ter maior segurança, como contratos particulares de aluguel, contratos de compra e venda de veículos; entre alguns outros tipos de cartórios que existem por aí.

Outra coisa que muita gente pensa é que cartório entende de tudo. Ledo engano. Muitas vezes nós sabemos menos do que quem a gente atende. Um dos maiores equívocos do povo é achar que por estar reconhecendo uma firma em um documento, a gente sabe o que tem que fazer com ele depois. Por favor, não pensem isso. O cartório entende de reconhecer firma, mas não entende de INSS, Detran, banco ou qualquer outra coisa. Se a sua faculdade pediu para você autenticar seus documentos, o cartório não tem a mínima idéia se é só a identidade, ou se é a identidade, o CPF, o título de eleitor e a certidão de nascimento.

Assim como existem lojas que vendem vários tipos de coisas diferentes, existem cartórios que possuem várias atribuições, como o que eu trabalho, por exemplo: somos um cartório de notas, um cartório de registro de imóveis, um cartório de registro de títulos e documentos, um cartório de registro de pessoas jurídicas e um cartório de protesto de títulos. Por que tanta coisa junta num lugar só? É que minha cidade - Cachoeiras de Macacu, pra quem não sabe - é um lugar pequeno, do interior do Rio de Janeiro, e que, portanto, não tem capacidade para abrigar vários cartórios. Fica mais fácil para a justiça reunir tudo num só. Existe aqui também, em um dos distritos do município, um cartório que é de notas e de registro civil. Nas cidades grandes, é mais comum haverem cartórios com apenas uma atribuição. Então, entenda uma coisa antes de entrar em um cartório: pode não ser ali que seu problema será resolvido.

Antes de reclamar preços e condições para executar um serviço num cartório com o pobre coitado do atendente, é bom saber que tudo que é feito entre as suas quatro paredes é regido por um código de normas que deve ser seguido rigidamente, sob pena de multa e afastamento do serviço. Acompanhando o Diário Oficial, já encontramos casos em que cartórios receberam muitas de mais de cinco mil Reais. Logo, quem te atende e diz que não pode fazer um serviço ou cobra muito caro, não está sendo chato ou querendo te sacanear: está apenas seguindo a lei, sob pena de, não o fazendo, correr o risco de morrer numa grana e até perder o emprego. Muitas vezes nós mesmo do cartório concordamos com as pessoas que reclamam dos preços que são cobrados, mas, infelizmente, não podemos fazer nada contra isso.

Sobre pagar, muita gente acha que cartório trabalha de graça. Nem todos. Onde eu trabalho, tudo é cobrado. Tem gente que pensa que o governo repassa para nós os valores referentes ao serviços que prestamos, mas isso não acontece. Muito pelo contrário, nós é que repassamos para o Estado uma porcentagem sobre tudo o que é feito atrás do balcão.

Por fim, o cartório muitas vezes não precisa saber os seus motivos para fazer alguma coisa lá. Se a sua faculdade pediu para você reconhecer uma firma, se quem alugou seu prédio não pagou um aluguel, o cartório não precisa saber disso quando for reconhecer a firma ou quando for protestar uma nota promissória. Gente de cartório, apesar de não parecer, tem mais o que fazer, e não pode perder muito tempo com a história de todo mundo.

Bem, de início acho que é isso. Aguardem que vou iniciar uma série de textos onde vou detalhar os serviços que são feitos nos cartórios - pelo menos, os que são feitos no cartório onde eu trabalho, que são os que entendo.