O Domingo que Não Volta Mais

No dia 22/06/2004 publiquei o texto abaixo aqui no Sarcófago. Nem parece que foi há mais de um ano, pois pra mim ainda é bem atual e forte. Desde aquela vez só encontrei com a sobrinha do seu Domingos uma ou duas vezes, mas foi passando pela rua, sem chances de conversar. Essa semana ela apareceu no cartório e aproveitei para perguntar dele.

De acordo com ela, seu Domingos morreu cerca de três meses depois de ter passado a procuração, e ela nem conseguiu resolver nada para ele. Foi enrolada pela máquina nojenta da burocracia até o fim, até a morte do tio.

Sempre tive vontade de mostrar o texto a ela, mas acho que agora não há mais porquê. Fiquem então com o texto. É meu tributo a um coroa gente boa que já não está mais entre nós.

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Seu Domingos é um senhor já na terceira idade. Não sei quando é que veio morar aqui na nossa cidade, mas sei que até poucas semanas atrás ele morava em algum lugar de São Gonçalo.

Também não sei dizer em que condições ele vivia, mas tenho certeza de que não era numa casa bem acabada. Só consigo enxergar o seu Domingos numa casa ainda com os tijolos à mostra, num quintal sem cuidados, perto de um valão, algo assim. Talvez nada muito mais luxuoso que isto.

Mas pior do que suas condições de moradia, estava seu estado de saúde: aidético. Com 65 anos e aidético. Duro de se ver. Se alguém acha que não poderia ser pior, pode sim: sua única filha não tem o menor interesse em cuidar dele. Em suas próprias palavras, estava largado às moscas em casa, até que sua sobrinha apareceu.

Quando ela foi visitá-lo, seu Domingos chorou como criança, dando graças a Deus pela chegada de sua possível salvação. E, sim, sua sobrinha foi sua salvação. Como a filha de seu Domingos não se preocupava com ele, a sobrinha o trouxe para nossa cidade, onde ele finalmente foi internado em um hospital para receber o mínimo de tratamento possível, já que o nosso hospital não é nenhum exemplo de qualidade. De qualquer maneira, estar no hospital de Cachoeiras é melhor que estar largado às moscas em um barraco de São Gonçalo.

A sobrinha dele, então, cujo nome nem me lembro mais, foi até o cartório para poder fazer uma procuração, de modo que pudesse agir as coisas para ele. Ela me passou a documentação e alguns dias depois fui com ela até o hospital para pegar a assinatura dele.

Magro, fraco, velho, doente. Bem doente. Mas ainda assim um exemplo de pessoa. A maioria das pessoas que estivesse numa situação parecida com a dele com certeza entraria em depressão, mas não é o que acontece com ele. Não sei se seu Domingos é religioso, se crê em Deus, se reza todas as noites, mas ainda assim, ele é um exemplo de perseverança que vou me lembrar pra sempre.

Seu Domingos é um grande brincalhão, que faz piada com o próprio estado. E também tem força para seguir em frente. "Eu vou chegar aos setenta, vocês vão ver". Muitas piadas depois, com o documento já assinado, voltamos ao cartório, eu e sua sobrinha. Foi aí que conheci a história dele, de onde ele tinha vindo, como tinha chegado até ali.

Seu Domingos pode até não ter chances de viver muito, mas com certeza foi salvo pela sobrinha de sofrimentos maiores se ficasse com a filha. Abençoada sobrinha que abre mão da própria vida para salvar o tio. Abençoado Domingos que não desiste de lutar.

Isto não é um conto, é uma história verídica, e dói pensar que existem muitas pessoas como ele que não são salvas. Que não têm uma sobrinha para socorrer, que têm filhos que não estendem a mão. Mas seu Domingos, com sua energia, tem um bom exemplo para mostrar. Que Deus lhe dê muitos anos de vida. Que Deus o abençoe.

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