Um Desabafo

Em 2010, eu era uma pessoa diferente. Falava que bandido bom é bandido morto, e que direitos humanos eram para humanos direitos, e era contra essa galera que defende bandido. Achava um saco o tal do politicamente correto e ria de piadas de preto e viado. Vibrei com o Capitão Nascimento, que descia a porrada nos bandidos pra conseguir informações. Se o termo já tivesse sido inventado, provavelmente falaria mal das feminazis. Como mantenho meu blog há mais de 15 anos no ar, essas coisas ainda estão lá nos arquivos.

Ao mesmo tempo, via uma galera falando exatamente o contrário. Curiosamente, era uma galera que eu admirava por outros motivos. Eram pessoas de boas, que falavam coisas interessantes, que eram inteligentes. Eu dizia que eram exemplos do que eu queria ser quando crescesse. E me perguntava o que podia estar errado. Porque essa diferença de pensamento?

Um dia, perguntei pra Lola. Uma pergunta sincera de quem quer entender. Não uma pergunta-desafio, daquelas que vêm com o tom de e agora, como é que você me explica essa merda, hein? HEIN? De novo: era uma pergunta sincera. Aí começamos a conversar e eu entendi.

É claro que o entendimento não trouxe uma mudança imediata, mas foi inevitável ficar pensando naquilo e hoje enxergo as coisas com uma diferença muito grande. A defesa dos direitos humanos e o tal do politicamente correto se resumem a uma coisa bem simples:

NÃO ABRIR PRECEDENTES

Se exijo determinados direitos pra mim, então para que possamos viver em sociedade é preciso que todos também os tenham. O mesmo vale para limites: se exijo determinados limites para os outros, então para que possamos viver em sociedade é preciso que eles sejam impostos também a mim.

Se uso minha religião para impor limites, abro o precedente para que outros façam o mesmo com suas religiões. Se me dou o direito de fazer justiça com as próprias mãos, abro o precedente para que outros também façam. E como fica se minha religião prega que a vaca é sagrada e não pode ser morta? E como fica se o meu vizinho acha que meu som alto deve ser punido com pedradas na janela?

Então é preciso abrir mão para não abrir precedentes. Assim como tenho o direito de ir e vir mas não posso entrar no apartamento dos meus vizinhos sem sua permissão, tenho o direito à liberdade de expressão mas não posso sair por aí falando qualquer insanidade que possa ofender as pessoas.

E por isso organizamos nossa sociedade da maneira que é. Como somos impulsivos quando estamos com o espírito agitado, seja na alegria (sim, eu caso!), seja na tristeza (não aguento mais, vou beber), seja na raiva (desgraçado, vou te enfiar a porrada), para nossa própria segurança criamos mecanismos para impedir que a gente acabe agindo de qualquer maneira.

Imagine a loucura se sempre agíssemos no impulso, fazendo justiça com nossas próprias mãos como bem entendêssemos. Todos se achariam com o mesmo direito, e seria o caos.

Quanto mais abrimos precedentes, mais corremos o risco de cairmos em uma espiral de agressão e violência. Num movimento contrário, o que precisamos é de um ciclo virtuoso de confiança. Se existe um limite e nós temos a confiança mútua de que ninguém irá além deles, podemos levar uma vida mais serena e tranquila.

Enfim: não tem ninguém defendendo bandido: estamos tentando defender a nós mesmos da barbárie.

E aí chegamos aos dias atuais.

Já há muitos anos, desde que Jair Bolsonaro começou a aparecer na mídia, ficou claro que era um homem truculento, sem tato para lidar com as pessoas. Esqueça que ele é candidato e lembre das entrevistas, lembre das declarações. Sempre foi no berro, sempre foi com agressividade. Destratou repórteres, mandou pessoas calarem a boca.

Desde então, quando começou a ganhar notoriedade, seu jeito violento atraiu um sem-número de fãs que achavam bonita essa violência. Batiam palmas e celebravam cada agressão noticiada. Sempre reparei nessas pessoas e via que tipo de gente era: bullyies, preconceituosos, machistas, gente que não sabe nem quer dialogar. Sofri com o bullying durante muito tempo, há tanto tempo que é de uma época que bullying nem tinha nome, e por isso reconheço de longe esse tipo de pessoa. Pessoas que medem seu sucesso com base no tamanho da dor que consegue causar.

Hoje, com ele candidato, essas pessoas estão se sentindo cada vez mais no direito de serem violentas. Sentem-se imunes para humilhar, menosprezar, ferir. Não é difícil imaginar como vão se sentir caso ele seja eleito. Verão todo o seu preconceito e agressividade sendo validados. Vão achar que podem sim xingar quem lhes parece inferior, vão achar que podem sim enfiar a porrada no casal gay que encontrarem atravessando a rua. Os relatos já estão começando.

Apoiá-lo é dar corda para essas pessoas. É dizer, continuem que tá bonito.

Por isso, muito me deprime ver tantas pessoas queridas apoiando a sua candidatura. É uma sensação de desamparo muito grande: quem eu pensava que estava do nosso lado não está. Eu compartilho de suas indignações: o Brasil está mergulhado na corrupção, na violência, no descaso, na má fé e na má vontade. Sonho com um país sem falcatruas nos órgãos públicos, sonho com um país sem filas nos hospitais, sonho com um país em que possa andar na rua sem medo de ser roubado.

Mas há muitas maneiras de se fazer isso. E apoiar um candidato que valida um comportamento selvagem que põe em risco a vida de meus amigos, que legitima um comportamento que pode levar nossa vida em sociedade à barbárie, ah, isso não dá.

Se você chegou até aqui, peço que pare pra refletir um pouquinho. Eu sei que o PT fez um monte de merda, eu também não gosto do PT, mas você não enxerga o quanto a vitória de Jair Bolsonaro pode ser ainda mais nociva? Acha mesmo que tanta agressividade é aceitável? A truculência com que ele trata quem pensa diferente não te assusta? Você tem disposição para abrir esse precedente? Os fins (que são os mesmos para todos nós) justificam esses meios?

Repense, por favor.

Nenhum comentário: