Parte III - Verdade
As dúvidas cresceram e eu me sentia cada vez mais desconfortável. Nunca consegui tomar a Bíblia como um registro histórico literal: a criação do mundo em sete dias, Jonas na barriga do peixe, o Mar Vermelho abrindo ao meio. Nada disso pra mim fazia sentido. Havia também o problema do questionamento ser mal visto. A simples sugestão de uma dúvida era suficiente para despertar olhares de repreensão.
E não era só isso: eu não me sentia satisfeito com as explicações de que Deus estava cuidando de tudo, que bastava orar para resolver problemas. Fazer isso me dava a sensação de que eu não tinha coragem de encarar os problemas da vida e assumir a responsabilidade por meus atos e as consequências deles.
Duas coisas aconteceram então, e elas me puseram no caminho da desconversão. Primeiro, uma piada que li numa página qualquer da internet: para muitos crentes, a Bíblia é como um contrato de software que você rola até o final sem ler e clica em concordar. Eu vi que isso tinha acontecido comigo e achava muito incoerente continuar agindo assim.
Depois, em uma conversa com a namorada, já então esposa, questionei o fato de sermos condenados a uma punição eterna por conta dos erros cometidos durante uma vida tão curta quanto a nossa. Ela falou que se eu tinha aceitado Jesus como meu salvador, eu tinha que acreditar também na punição. Não faz sentido achar que o inferno não existe e acreditar que foi salvo dele, disse ela. Realmente, não fazia sentido, só que essa frase chegou aos meus ouvidos de outra maneira: não fazia sentido acreditar que Jesus podia me salvar do inferno se eu não acreditava que o inferno existisse.
A partir daí eu fui, aos poucos, deixando de acreditar (ou de tentar acreditar) em uma série de verdades e conceitos que são a base de sustentação da fé cristã (e, numa visão mais ampla, de qualquer fé em coisas sobrenaturais). A cada conceito e certeza que eu abandonava, tentava me apegar ainda mais aos que restavam. Mas chegou um ponto que não deu mais: a estrutura já estava frágil demais. Sem essas bases, o castelo de cartas da minha fé ruiu. Minha conversão, mesmo que sincera, tinha sido vã.
Foi aí, já na casa dos trinta, que vi que na verdade eu não acreditava em nada sobrenatural.
Eu até reconheço e não descarto a possibilidade de que existam seres descomunais, responsáveis pela criação do universo. Ou então que todo o universo seja parte de algo ainda maior (algo meio Homens de Preto, sabe como é?). Mas penso assim não porque ache que as coisas são maravilhosas e perfeitas e que, portanto, só podem ter sido criadas por alguém. Não! É só porque simplesmente não dá pra provar que não. São apenas possibilidades e hipóteses, muitas vezes bem divertidas de ficar imaginando. Nas divindades descritas pelas religiões, nessas eu não acredito.
Cheguei à conclusão que para mim a crença em entidades e poderes sobrenaturais é incoerente com o que eu vejo da vida e percebo do mundo. Não consigo aceitar explicações místicas para o que está diante dos meus olhos. Já me disseram que é revolta com Deus, mas eu não consigo acreditar que existem divindades bondosas e caridosas velando por nós enquanto há crianças sofrendo nas mãos de pedófilos e pais violentos. Não consigo acreditar que orações resolvam alguma coisa se pessoas morrem de câncer enquanto outras estão rezando por elas.
Admitir minha descrença não foi fácil. Primeiro porque a não-religiosidade é um terreno inóspito, muito malvisto pela maioria das pessoas. Além disso, é muito especial a sensação de acolhimento e pertencimento por estar em um grupo religioso, e isso é algo que eu acabei perdendo. O EJC que fiz em 2006 continua sendo um dos eventos mais emocionantes da minha vida. E ter a certeza de que pra tudo se tem alguém disposto a intervir a seu favor dá uma segurança e um conforto muito grandes.
Mas não consigo mais pensar assim. É como se eu tivesse aprendido o segredo de uma mágica e nunca mais conseguisse deixar de ver as cordinhas sendo puxadas pela equipe de produção.
A seguir, Uma Outra Perspectiva.
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