Eu e a Religião - Parte IV

Este artigo é a quarta parte de um longo ensaio sobre minha relação com a religião. No anterior eu conto como me afastei do cristianismo, aqui eu explico como enxergo a fé.

Parte IV - Uma Outra Perspectiva


Sei que há muitas coisas fantásticas que acontecem, e para as quais não temos ainda explicações, a não ser aquelas dadas pelas religiões - santos que curam, apoio de desencarnados, má influência de demônios, a posição dos astros. Mas estas explicações não me satisfazem. Se para os fiéis uma cura improvável é a prova de que há alguém velando por nós, pra mim todos os outros que morrem são uma forte indicação de que não tem ninguém olhando. Onde alguns veem sinais e evidências, eu vejo apenas coincidências.

Quando passo por um problema, pensar que uma divindade vai zelar por mim se eu pedir com muita convicção me soa como desperdício de tempo. A esposa já perguntou se eu não gostaria que as pessoas fizessem orações caso eu caísse doente. Eu já deixei avisado: prefiro que façam coisas mais práticas, como me manter limpo, me dar os remédios na hora e botar música pra tocar.

Sei que tem gente que precisa de uma âncora, um amuleto, para poder se sentir motivada. E nisso reconheço o grande poder da fé. As pessoas são capazes de coisas incríveis quando estão amparadas numa crença sólida. Algo do tipo "agora que eu fiz o meu trabalho, Ogum vai me ajudar a passar no vestibular" e então se lasca de tanto estudar porque sabe que vai ter uma divindade ajudando. E aí vai lá e passa na prova.

Também reconheço que a fé, seja lá no que for, tem um papel ainda bem misterioso em processos de cura, e isso me intriga muito. De tudo o que já li e estudei, o que parece é que a fé é um placebo com anabolizantes. Quando entendermos como isso acontece, vamos ver que essas curas se dão por processos tão naturais quanto quaisquer outros. Da mesma maneira que aprendemos que Tupã não era uma voz divina, mas apenas o som gerado pelos raios.

Cada vez mais eu percebo e aprendo como nossa mente funciona. Por isso penso que os fenômenos que as pessoas experimentam em templos são frutos de suas próprias cabeças. Eu já entrei em um estado de transe durante um culto, uma experiência muito prazerosa e incrível. Mas já tive uma experiência semelhante durante um show, e vejo que a minha entrega ao ambiente em que estava foi fundamental para o que senti.

Reconheço a força disso tudo, acho lindas e emocionantes certas manifestações de fé. Só que pra mim estas experiências são fruto da nossa capacidade de autossugestão, não da intervenção direta de alguma força sobrenatural.

Eu não consigo mais pensar que as coisas boas que me acontecem se dão porque os astros estão alinhados do jeito certo. Se fosse assim, eu me pergunto sempre, então as pessoas sofrem porque são ignoradas por Vishna? Minha cirurgia deu certo porque Shiva guiou a mão da cirurgiã, e outras pessoas morrem na mesa porque seus anjos da guarda têm outros assuntos a tratar?

Para cada afirmação categórica me vêm à mente exemplos desconcertantes. Um amigo perdeu o pai e uma pessoa disse a ele que Deus tinha sido bom com o pai dele, por conta das circunstâncias da sua morte. Então com os outros ele tinha sido o que? Estúpido? Escroto? Espírito de porco?

Uma amiga teve a casa invadida por assaltantes. Eles a amarraram junto com a empregada e torturaram o seu marido. Queimaram os dedos dele, cortaram ele com facas. Levaram tudo o que tinham dentro de casa: eletrodomésticos, comida, os produtos que ele vendia na loja. Um suplício que durou sete horas. Enquanto isso tudo acontecia, seu filho de um ano e meio dormiu placidamente. Uma pessoa ouviu a história e disse, "Deus protegeu." Não tenho palavras para expressar meu desconcerto com essa afirmação.

Os exemplos são, enfim, inúmeros.

Além do que, pra fechar este raciocínio, me soa quase como deboche eu dizer que fui abençoado de alguma forma por alguma divindade quando uma pessoa crente nesta mesma divindade não foi. "Lero lero! Nossa Senhora do Livramento gosta mais de mim do que do teu irmã-ão, eu não me feri e ele está paraplégi-côô!"

Um dia, conversando com um amigo, ele disse que estava fazendo uma trilha quando chegou a um lugar lindo. Disse que se encheu de paz, ficou assombrado e extremamente grato à vida por estar cercado de tanta beleza e, enfim, encontrou Deus.

É uma maneira bacana de pensar. Deus (ou qualquer outra divindade) deixa de ser uma entidade sobrenatural, um ser superior, um pai bondoso, uma divindade a ser temida / adorada / idolatrada / respeitada, criadora de tudo e todos, que tudo sabe e tudo vê, que julga e absolve ou condena, que intervém (ou não) na vida das pessoas, seja em resposta a orações, vontade própria ou de acordo com nossa adequação às suas regras.

Ao invés disso, passa a ser o conjunto de caraterísticas de um momento que faz com que ele seja tido como bom ou ideal. Deus é quando as circunstâncias são boas, harmônicas, serenas, sem violência e sem tensão. Se pego um avião e na viagem há raios e trovões, turbulência, crianças chorando, com alguém roncando do meu lado, então a viagem foi com problemas. Mas se a viagem foi com céu limpo, sem choro e sem ronco, então viajei com deus.

Por isso me soa tão inútil rezar pros santos, como se as circunstâncias fossem nos dar ouvidos e se adaptar à nossa vontade. Seria como rezar para a gravidade não puxar a porcelana em direção ao chão quando ela escorrega da nossa mão.

***

A seguir, A Religião em Minha Vida

Nenhum comentário: